-Desdêmona!
Ele abriu as grades.Eu não passava de um trapo imundo de sangue, urina e suor nos odores acres da masmorra.O calor insuportável quase me impedia de respirar.
-Desdêmona!
Não ousei abrir os olhos.Equimoses e hematomas cobriam meu rosto. Não queria ser vista assim.Não por ele.Havia pena e culpa em sua voz.
-Desdêmona... Desdêmona...
Meu nome soava carregado de dor.Seu eco reverberava pela pedra nua das paredes, de onde outrora se ouviam gemidos.Respirei fundo. Tentei abrir os olhos. Só o esquerdo pareceu obedecer-me.
Hans abriu os grilhões e sustentou meu corpo antes do triste encontro com o chão frio.Meus pulsos, em carne viva, doeram ao encontro com o aço frio da armadura, coberto das insígnias causadoras da minha desgraça...Tolos!
-Eu...Eu odeio você...
Foi tudo o que pude falar.Meus ombros doíam pelo tempo em que fiquei suspensa nas correntes.Eu sangrava, mas do orgulho, preceito e das certezas feridos que do corpo...Era esse o amor que o Deus deles pregava?
-Seus cabelos...Dê, meu amor...Ai de mim...Escute-me com atenção...Vou tirá-la daqui...A Lua cheia vai nascer
Seus pedidos de perdão não restituiriam a ninguém a vida, não apagariam essas torpes e amargas memórias.Ele colocou em meus lábios algo tão doce quanto as danças realizadas nos prados, suave e frio como o toque da urze orvalhada em pés descalços.Se em mim restassem forças, haveria cuspido-lhe a face.
Tentei repetir mentalmente tudo o que ele dissera.Presenciei muito para saber que não me esborracharia na parede se essa fosse a vontade dos deuses.Ou cairia naquele profundo abismo que muitos diziam não ter fim, mas eu sabia que apesar da longa queda, havia um fim entre as rochas e o mar, razão de sua terrível fama.
Por que Hans se arriscara tanto?Meu corpo doía e ansiava demais pelo ar puro e o vento batendo em meu rosto para questioná-lo seriamente.Olhei através das grades.A Lua não demoraria a nascer...
Ele deixou-me estendida no catre.Temia que eu morresse antes da fuga.
-Boa Sorte...Que seus deuses a protejam...
Hans se foi.Eu me perguntava se acharia forças para chegar até a parede...Oito pés a separavam se mim e era algo instransponível.A Lua adentrou o cárcere, enfim inundando tudo.
-Coragem, filha!Ainda não é sua hora!Levanta!
A voz era o doce murmúrio do mar, o assobio do vento nas palhas do telhado ou seu doce sussurro enquanto fazia amor com as árvores.Era a chuva da primavera, os sons esquecidos das vozes dos carvalhos nos bosques, o uivo do lobo nas noites de caça...De repente, eu pulsava. Como a terra das colinas onde correm os cervos a celebrar antigos ritos... Como o pulsar de quando homem e mulher se tornam um...
-Mãe!
Eu me ouvi gritar.Abri os olhos.Meu corpo se lançava ferozmente à parede, atravessando-a...E eu caia...Meus ossos doíam ao sabor gélido do vento.A iluminada torre dos meus algozes ficava para trás.Alegrava-me as rochas à uma morte desonrosa e eu estava aproximando-me delas.Disse adeus ao céu, aos elementos, às estrelas -minhas irmãs...Estava pronta...
Percebi algo voando em minha direção, como uma grande águia, mas não o era.Um grifo!Eu estava sonhando!Ou então morrera e esse era o ser que atravessa as almas rumo ao outro mundo...
Seu bico rasgou-me a pele, jogando-me para o alto.Fui aparada em suas plumas macias.
-Segure-se, menina - sua voz era um estridente e suave, com o tom se quem viveu muitas luas.Garanto-lhe uma bela fogueira e irmãos ansiosos para dispensar-lhe seus cuidados.
Uma prece surgiu em meus lábios.Esse não era meu fim.Eu estava apenas começando...